terça-feira, 1 de abril de 2008

A HERMENÊUTICA DE CALVINO: O HOMEM E SUA HERMENÊUTICA



Por Martorelli Dantas

A forma como você pensa e interpreta o mundo ao seu redor não é, absolutamente, individual. Ela é a resultante de inúmeras influências que pesam sobre você, e que foram se acumulando com o passar dos anos. Assim cada indivíduo é capaz de fazer interpretações distintas do mesmo objeto, porque as ferramentas que ele utiliza para interpretar são partes do que ele é. Talvez fosse mais apropriado dizer que ele interpreta com tudo o que é.


Porém, é possível “uniformizar”, ou adotar como padrão um determinado método de interpretação. É possível aprender procedimentos que devem ser observados ao por em análise um texto. Como João Calvino (1509-1564), o reformador francês, é um dos mais influentes pensadores de nossa herança teológica; e toda teologia é simultaneamente mãe e filha da Hermenêutica (mãe, porque o que cremos exerce influência em como interpretamos; filha, porque aquilo que interpretamos fortalece e fundamenta o que cremos), creio ser de todo apropriado, empreendermos uma pesquisa sobre a Hermenêutica de Calvino.


Este será o objetivo do presente artigo, conhecer melhor como o Reformador de Genebra interpretava, e o porquê deste agir hermenêutico. Estou consciente que este objetivo não será desenvolvido com a abrangência necessária na presente obra, mas fica a proposta e o desafio de conhecermos melhor o homem e sua hermenêutica, posto que, sem dúvida, o estudo da interpretação realizada no passado, abre um porta para o conhecimento do indivíduo já distante no presente.


As Fontes que Influenciaram o Método Hermenêutico de Calvino


Como afirmamos desde o início, a maneira como interpretamos o mundo ao nosso redor e, por conseguinte, os textos que nos chegam às mãos (a Bíblia não está fora deste conjunto), é determinada por aquilo que somos, e o que somos é esta interminável síntese de distintas influências, que coabitando no nosso interior geram nossa individualidade. Destacaremos em seguida dois momentos da história da Hermenêutica que chegaram a Calvino e o influenciaram quer positiva, quer negativamente, apresentando a ele ora um caminho por onde seguir, ora assinalando veredas a serem evitadas.

1. A Hermenêutica Medieval.


Calvino, nascido no início do século XVI, vê ao seu redor um mundo infestado pela interpretação alegórica das Escrituras. Esta fora a hermenêutica dominante durante a Idade Média, muito embora haja dignos exemplos de teólogos que valorizavam o sentido literal do texto, o sentido mais “simples”, aquele pretendido pelo autor humano. Homens como o teólogo judeu Rashi; Hugo, Ricardo e André da Abadia de São Vitor; Nicolau de Lira (que exerceu grande influência sobre Lutero) e, é claro, João Wycliffe, são exemplos de pensadores, que mesmo em face da predominância da visão do quádruplo sentido da Escritura (histórico, alegórico, tropológico e anagógico)[1][1], defenderam e usaram aquilo que poderia ser descrito como uma hermenêutica histórico-gramatical incipiente.

Parece-me importante destacar que a dialética entre a interpretação e a dogmática, já referida acima, esteve presente de forma decisiva na hermenêutica medieval. Se alegorizavam os teólogos da chamada Era das Trevas, não o faziam sem uma agenda de compromissos de dois níveis principais.


Por uma lado, a teologia herdada dos Pais da Igreja, que recebe pouco desenvolvimento neste período, com exceção da Eclesiologia que ganha novos e amplos contornos; por outro lado a política. Não devemos nos esquecer que a Igreja Medieval é um “império”, ou melhor, o Império. Que pervagava todos os demais, não raramente de forma tirânica e dominante. Não existe poder político sem ideologia, a ideologia do império Católico Romano é a sua própria teologia, e é na construção testa teologia de sustentação que se engaja a alegorese medieval.


Este assunto ganha uma importância quase dramática, porque a obra teológica de Calvino não se vê livre desta relação dialética entre interpretação e teologia de sustentação do poder, muito embora seus compromissos sejam bem outros, ele também produz uma teologia que legitima um estado (e que se contrapõe a um outro) e que é alimentada pela ideologia deste estado, que é, poderíamos dizer, o estado burguês.


2. A Hermenêutica de Lutero


Entre a hermenêutica medieval e a obra de Calvino, devemos situar o trabalho e Martinho Lutero (1438-1546). Lutero é um interprete da renascença[2][2] européia. Com o afã de viver de acordo com o modelo de Agostinho (354-430), Lutero, assim como muitos dos seus contemporâneos, empreendeu uma investigação da obra filosófica grega e dedicou-se ao estudo do Novo Testamento em sua língua original. Este empreendimento, aliado à influência já referida dos vitorinos e da escola de Antioquia, que se digladiou durante o segundo e quarto séculos com a escola de Alexandria (esta defensora da alegorese, aquela de uma interpretação mais literal do texto bíblico), fez com que Lutero assumisse uma postura revolucionária em seus dias.

Bernard Ramm, em seu Protestant Biblical Interpretation, afirma que a Reforma do Séc. XVI, foi essencialmente uma reforma hermenêutica, “uma reforma na maneira de ver a Bíblia”.[3][3] Não é uma tarefa das mais fáceis analisar as razões motivadoras da hermenêutica de Lutero, já que ele e a própria Reforma ganharam um nível sagrado para a comunidade protestante dos nossos dias e, não raro, são tratados com reverência quase mística (o mesmo poderia ser dito acerca de Calvino e sua obra).


Mas é preciso que tenhamos em mente que a Reforma fez parte de um processo mais amplo de mudanças que se deram na ordem mundial naquele século. A Reforma seria o braço religioso, e portanto teológico, da estruturação do Estado Moderno.


Com a Reforma a Bíblia toma o lugar que antes pertencera a hierarquia Católico Romana. Não é mais o Magistério quem determina o que deve ou não ser observado, o que deve ou não ser recebido como mandamento divino, agora quem faz isso é a própria Bíblia (claro que sob as lentes dos teólogos reformados).


Aqui há nitidamente uma mudança do eixo do poder religioso, o qual deixa de estar centrado num determinado grupo de indivíduos e passa a estar sobre documentos (a Bíblia), que devem ser examinados e interpretados “livremente” por qualquer um. Daí a importância da doutrina da perspicuidade da Escritura, a qual afirma que qualquer pessoa pelo uso dos meios ordinários de interpretação, pode chegar ao conhecimento do conteúdo do que ensina a Palavra de Deus.
Lutero não se viu livre da alegoria, antes, por vezes, fez uso da mesma para explicar suas conclusões exegéticas (leia-se o segundo comentário de Lutero à Carta aos Gálatas, onde isto fica patente).


Ele é um homem de transição, como em certo sentido também o é Calvino, haja vista a teologia da ortodoxia protestante do século de XVII. Seu trabalho, contudo, trouxe inestimáveis contribuições à igreja cristã, destacando-se muito mais sua coragem e piedade, que em seu brilhantismo intelectual. Ele é sem dúvida um marco do resgate moderno[4][4] do método histórico-gramatical[5][5], embora não seja um de seus melhores exemplos.


Calvino e seu uso do método Histórico-Gramatical


Chegamos a Calvino, e deste momento em diante tentaremos apontar os tópicos que parecem ser suas principais preocupações no trato dos textos bíblicos e na formulação de sua teologia. Calvino faz um uso mais desenvolvido do método histórico-gramatical. Ele tenta levá-lo às últimas conseqüências e manter uma coerência metodológica ao analisar textos do Novo e do Antigo Testamento. Por estas razões não é exagero dizer que ele foi o maior pensador de seus dias e o grande exegeta da Reforma.

Com um excelente preparo acadêmico, versado nos escritos dos pais latinos e na filosofia grega, afeiçoado às línguas originais e em constante “diálogo” com os pensadores de sua época, Calvino pode legar à Igreja um conjunto de obras que norteiam ainda hoje a fé Reformada, e que excede em equilíbrio, seriedade e profundidade à dos seus predecessores diretos e de seus seguidores nos séculos posteriores ao seu. Daí, entendermos ser muito mais salutar, se queremos resgatar as origens de nossa fé presbiteriana, retornarmos ao próprio Calvino, que à escolástica protestante ou à obra puritana[6][6].


Aqui vamos resumir em máximas de interpretação, as preocupações que Calvino demonstrou ao redigir seus comentários bíblicos (ele comentou quase todos os livros do NT, com exceção de 2 e 3 João e Apocalipse, além de muitos livros do AT):


Princípios da Hermenêutica de Calvino


1. Renúncia à alegorese e enfática denúncia da mesma como sendo uma arma de deturpação do sentido da Escritura
Ao desenvolver sua teologia Calvino fazia menção à interpretações alegóricas desenvolvidas pela igreja papista durante os séculos difíceis da Idade Média, e mesmo por pais da igreja que desenvolveram teses insustentáveis exegético e teologicamente. Nestas referências ele denunciava de forma quase virulenta a alegorese, forma ilegítima de buscar o real sentido da Palavra revelada. Não raro, Calvino chamava tais interpretações de “ficções”, e com isto ele pretendia expressar que a origem de tais interpretações era a imaginação do intérprete e não a revelação do Divino.


Desta prática apologética de Calvino, podemos apreender que para a adequada utilização do método histórico-gramatical, o intérprete deve deixar o texto falar por si só. Deve, na medida do possível, impedir que sua própria inventiva projete sobre o texto significados e afirmações que nele não subjazem.


2. Ênfase no sentido literal do texto
Calvino defende que cada texto tem um, e somente um, sentido, que é aquele pretendido pelo autor humano. Este sentido pode ser percebido pela leitura simples da Escritura. A forma mais comum de entendermos o que pretendia dizer o autor sacro, é buscar no sentido literal da passagem.
Vale, porém, lembrar que Calvino não era como ele mesmo designava, um “literalista”, aqueles que desprovido de bom senso, criam que todo texto deva ser interpretado de forma literal. Ele esclarecia aos seus leitores que há passagens que são nitidamente figurativas e outras simbólicas, estas devem ser interpretadas como demonstra ser a intenção do autor. Ele é categórico ao afirmar que a tipologia do texto pode ser percebida mesmo por indoutos em uma rápida leitura da passagem, e que aqueles ignoram isso o fazem devido à distorções de seus próprios espíritos perversos.
3. Dependência da operação do Espírito Santo para a correta interpretação da Bíblia


Na ótica calvinista, é tríplice a ação do Espírito em relação à Escritura. Em primeiro lugar, Ele inspirou os autores sacros, colocando em seus corações aquilo que pretendia fosse registrado para a posteridade e, principalmente, impedindo que ao registrar tais verdades, fossem inseridas máculas ou desvios provenientes da falibilidade do instrumento (o homem); em segundo lugar, ele preservou e preserva através dos séculos pura a sua Palavra para benefício e instrução da igreja, impedindo de forma miraculosa, que a verdade fosse distorcida ou omitida; e em terceiro lugar, Ele age hoje sobre os seus ministros, iluminando suas mentes para que compreendam corretamente o significado e as várias aplicabilidades[7][7] dos textos, para a benção e edificação do povo de Deus. desta forma, é impossível, pensava Calvino, e nós cremos ainda hoje, fazer adequada interpretação e pregação da Palavra, sem a dependência absoluta do Espírito Santo de Deus.


4. Valorização do estudo das línguas originais para melhor compreensão do ensino sagrado


Conquanto Calvino cresse na intervenção e auxílio do Espírito para a correta interpretação da Sacra Letra, ele jamais desprezou ou minimizou a importância do contínuo e cuidadoso estudo das línguas originais. Como já afirmei acima, o reformador de Genebra era versado em grego, hebraico e aramaico, além de possuir total domínio do latim e do francês, pelo menos.

Lendo as Institutas e seus comentários de livros de ambos os Testamentos, encontramos Calvino não apenas se referindo às palavras na língua original em que o texto foi escrito, mas também descendo a detalhes como o significado da conjugação de um verbo ou do modo de um dado substantivo. Tais conhecimentos são úteis e importantes para uma benfadada prática hermenêutica[8][8], chegando mesmo a Confissão de Fé de Westminster consagrá-los como “supremo tribunal” para que sejam dirimidas dúvidas.


5. Tipologia equilibrada, evitando impor a textos veterotestamentários simbolismos que eles não suportam


Na teologia há que se fazer uso de tipologias, que consiste em perceber que determinadas realidades do Antigo ou do Novo Testamento podem, corretamente, ser apropriadas como representações de verdades sublimes. Lutero no afã de demonstrar que Cristo está presente em toda a Bíblia, de Gêneses à Apocalipse, por vezes fez temerárias apropriações. Quase que impondo significados cristológicos a textos onde, provavelmente, não era esta a intenção Espírito e do autor (que são sempre a mesma).


Tal prática não pode ser encontrada na obra de Calvino, destarte o delicado momento histórico em que ele viveu. É digno de nota o fato de que para Calvino toda a Escritura aponta para Cristo, mas ele não está tipologicamente figurado em toda passagem da Escritura, como pretenderam alguns medievais e, em menor medida, Lutero.


6. A melhor arma para interpretar a Bíblia é a própria Bíblia


Este tem sido considerado o princípio áureo da hermenêutica reformada. Ele reza que os textos menos claros da Escritura sejam interpretados à luz dos textos mais claros. Esta é a prática generalizada de Calvino em todos os seus escritos. Sua primeira opção é sempre conferir textos paralelos que tratam do mesmo assunto.


Um exemplo disso, aparece quando comentando no quarto livro a dimensão herética que tomara a prática de ungir os enfermos, degenerando na unção in extremis (extrema unção), ele chama à memória o texto de Mc. 6:13, onde está registrado que os apóstolos na ministração de cura aos enfermos de diferentes aldeias e povoados por onde passaram em cumprimento de uma comissão dada pelo próprio Senhor Jesus, fizeram uso da unção com óleo, lembrando ainda que ao curar um cego Jesus fez lodo com saliva e areia, ungiu os olhos enfermos, curando-o.


Findando por relembrar que no Antigo assim como no Novo Testamento o óleo simboliza o Espírito Santo.
Desta forma, o grande mestre de Genebra, mesmo entendendo que a prática da extrema unção era prejudicial e promovida, freqüentemente, pelo misticismo pernicioso, ele não desvirtua o sentido simples dos textos em questão, antes os analisa com transparência, porém alertando para o mau uso que vinha sendo dado à esta prática no meio da igreja romanista.


Conclusão.


A aplicabilidade do Método Histórico-Gramatical em nossos dias e em nossas igrejas
Findamos, conclamando aos irmãos que professam serem reformados e calvinistas á prática de um exercício hermenêutico pautado nos padrões da interpretação histórico-gramatical. O acatamento de tal ação garantirá a nossa igreja um pensamento teológico coerente, firme e fiel. Em meio a tantos ventos de doutrina, precisamos definir não apenas o que pensamos de forma ortodoxa e clara, mas também como chegaremos a tais conclusões.


Nossa igreja é fundada numa tradição teológico-exegética que transcende os limites do tempo e do lugar. Para termos certeza que os nossos filhos receberão de nossas mãos uma igreja fiel, não poderemos abrir mão do método histórico-gramatical, recomendo para tal a observação dos princípios expostos, os quais fizeram parte da interpretação de Calvino e se transformaram na hermenêutica calvinista.

[1][1] Sob influência de João Cassiano (360-435) que ensinou em uma célebre quadra: “Littera gesta docet, Quid credas allegoria, Moralis quid agas, Quo tendas anagogia.” Que poderia ser traduzido como: A letra nos mostra o que aconteceu; a alegoria, no que devemos crer; a moral (sentido tropológico), como devemos viver; a anagogia, para onde estamos indo.
[2][2] A Renascença foi um movimento cultural, nascido na Itália do século XIV, que objetivava resgatar a literatura, a cultura e a filosofia clássicas (greco-romana).
[3][3] P.52
[4][4] Utilizamos aqui a expressão “moderno” em seu sentido histórico-filsófico, período que tem início com eventos como a Reforma do séc. XVI entre outros.
[5][5] Quando nos referimos neste artigo ao Método Histórico-Gramatical, falamos sobre o método consagrado na Reforma Protestante do Séc. XVI (embora existente, pelo menos, desde a hermenêutica judaica do séc. II A.C.), no qual prioriza-se o sentido simples do texto, aquele revelado pela leitura direta da passagem em seu sentido prioritariamente literal e é elucidado pela realidade histórica em que o mesmo foi escrito.
[6][6] Com isso não deixamos de reconhecer a importância de ambos os momentos de nossa caminhada teológica.
[7][7] Muito embora creiamos que cada texto possui um e somente um sentido, que é aquele pretendido pelo autor, estamos igualmente convencidos que este sentido possui inúmeras aplicações em incontáveis contextos diferentes.
[8][8] CFW I:VIII “O Velho Testamento em Hebraico (língua vulgar do antigo povo de Deus) e o Novo Testamento em Grego (a língua mais geralmente conhecida entre as nações no tempo em que ele foi escrito), sendo inspirados imediatamente por Deus e pelo seu singular cuidado e providência conservados puros em todos os séculos, são por isso autênticos e assim em todas as controvérsias religiosas a Igreja deve apelar para eles como para um supremo tribunal....”


Seminário Teológico do Sul - S.T.S.

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